Passei a virada do ano embaixo do chuveiro, agachado, chorando, minúsculo, invisível. Adolescentismo babaca. Senti, pela primeira vez, a dor da dor. Blablabla estou sofrendo, blablabla estou completamente sozinho. Pela primeira vez, acho, senti o que isso significava de verdade. A pressão nos meus órgãos era quase insuportável. Achei que fosse morrer ou então descer pelo ralo. Sem nenhum remédio, sem nenhuma arma, só a tristeza de Renato Russo, quase cocaína. Achei que alguma coisa em mim fosse explodir e sujar a parede. Pensei em ligar pro hospital, mas era mais digno não encher o saco dos enfermeiros com esse tipo de bobagem, até porque ser eu, ser apenas eu, ser completamente eu, foi escolha minha. E uma escolha terrível, diga-se de passagem. Eu poderia ter pulado do escorregador quando mamãe avisou que era perigoso. Mas eu sempre gostei de precipícios maiores, porque nem sei a minha própria profundidade. Eu nem sequer estava no escorregador, aliás. Estava embaixo dele. Agachado, chorando, minúsculo, invisível. Mas claro, com a dignidade de não estar sem roupa. Estava, naquela fatídica virada de ano, embaixo do escorregador, tremendo de medo daquelas pessoas, daqueles sons, daqueles porcos sinistros com maçãs enfiadas na boca. O balanço na casa do meu tio fazia um barulho horrível quando as outras crianças se balançavam. Era realmente terrível. Pior do que os fogos de artifício. Mamãe veio me tirar pra participar da roda de oração e eu me debati no chão, gritei com ela, disse que tudo aquilo era besteira, até que ela quase entortou meu braço e acho que nunca vi os seus olhos tão tristes. Eu era um porre, essa que é a verdade. Até que meu tio, levemente bêbado, foi até lá e me agarrou pelo braço quando eu já tinha me largado de mamãe e planejava correr. Ele disse, enquanto eu permanecia mudo e estático, olhando bem no fundo dos meus olhos:
- Você faz parte dessa família? Me responda se você faz parte dessa família. Se você faz parte dessa família, vai participar dessa oração.
Meu tio sempre cuspia enquanto falava. Eu não sabia o que responder.
Talvez eu não fizesse parte daquela família. Talvez eu fosse só um projeto de gente que se achava adulto demais, talvez mais adulto que meu próprio tio. Eu era o projeto de gente, medroso, que detestava o ano novo porque detestara até então todos os anos de vida que passou. Os momentos mais felizes eu nunca tinha comemorado com ninguém. Eu nunca comemorei anos. Sempre comemorei segundos. Segundos novos. E eu não via sentido em me alegrar por causa de um ano novo. 365 dias era tempo demais. Tempo que incluía os momentos em que senti falta do meu pai, os momentos em que não suportava a carência excessiva da minha mãe, os momentos em que eu ficava agachado embaixo do escorregador com medo de toda aquela gente perceber que eu existia. Com medo do barulho do balanço. Com medo daquela música estranha e com vergonha do meu tio que, por ser sempre tão pacato e amoroso comigo, por sempre dizer que eu era seu sobrinho favorito, eu desconfiava que já não gostasse mais tanto de mim assim.
Aquelas pessoas, aquelas que comemoram o ano novo com muita cerveja e barulho desnecessário, deveriam ser muito tristes. Tristes sim, por se alegrarem tanto em ver um ano sendo jogado fora. Eu sei que, no fundo, ou melhor, na teoria, estavam agradecendo pelas felicidades e dando adeus aos infortúnios que passaram, mas pra mim, não passavam de babacas com o nome sujo na praça. Eu só não sabia disso naquela época. A inocência eram uma coisa que me deixava louco.
Meus segundos prediletos aconteceram
Quando mamãe fazia brigadeiro pra mim e sempre comíamos juntos.
Quando comprava um Mc Lanche Feliz todas às sextas-feiras quando ia ao centro da cidade.
Quando me parabenizava por conjugar todos os verbos.
Quando tentou me colocar numa creche e eu esperneei tanto que ela teve que me levar de volta pra casa.
Quando viajávamos e ela me deixava comer um salgado com coca-cola no café da manhã.
Quando íamos à praia e ela imitava todos os bichos que eu pedia. Quando fazíamos bolos de areia e ela sempre deixava o meu ficar mais bonito.
Quando tomávamos banhos de piscina e eu ficava admirado com a capacidade dela de não afundar. Sim, mamãe não afundava. Por mais que mergulhasse. Era uma coisa engraçada apertar a barriga dela com toda a força do mundo e ver que mamãe era quase uma boia.
Quando quis imitá-la e boiamos juntos no mar, até que a correnteza nos arrastou e eu vi que não encostava mais o pé no chão. Mamãe se desesperou. As ondas naquele manhã estavam enormes. Nade, vá, nade, nade mais rápido, pegue impulso. Mamãe me empurrava com toda a força que podia e engolia tanta água que entre uma onda e outra eu via um rosto que mais parecia uma grande bola vermelha perdida. Eu também engoli bastante água. Até que veio uma onda gigantesca e nos empurrou mais pra areia. Mamã nadava apenas com as pernas. Com uma mão, fechava o nariz. Com a outra, tentava me salvar. Já em segurança, na areia, cansados, ofegantes, eu dei uma gargalhada enorme. O rosto dela estava engraçado. Ela tinha o olhar petrificado. Depois, contando a história para os amigos, mamãe disse: “Eu sabia que ia morrer. Eu tinha certeza que ia morrer. Mas eu só ia morrer quando ele se salvasse”. Ela cumpriu a promessa anos mais tarde.
(Mamãe, estou salvo. Mas não estou vivo.)
Ninguém nunca comemorou meus segundos favoritos. Talvez, eu gostasse dos fogos de artifício se eles realmente comemorassem algo mais significativo do que a porcaria de um número a mais no calendário. Aquilo tudo não fazia sentido, tio. Era só medo, angústia, pessoas estranhas, barulho. Pessoas tristes e estranhas. Pessoas com calcinhas amarelas e vestidos vermelhos. Pobres e sozinhas. Anos não mudam a gente.
Enfim. Dei uma mão para o meu tio, uma mão para a minha prima, fechei a roda e enquanto todos rezavam, eu permanecia com os olhos bem abertos e com uma ruga terrível na testa. Achava tudo aquilo um saco. E sei que mamãe lamentava tudo aquilo. Lamentava por eu ser daquela maneira. É por isso que, repito, não me senti no direito de ligar para os enfermeiros esta noite porque a escolha de ser eu foi completamente minha.
Naquela noite, coloquei um lençol na cabeça, fingi que dormia e escutei tudo o que minha mãe conversava com titio.
"Eu não sei, eu realmente não sei o que foi que deu nele essa noite. To tão chateada… Tão chateada mesmo. Meu resto do ano vai ser horrível, ele não tem consideração comigo. Parece um cachorro raivoso. Ele tava distante, tava frio, onde foi que eu errei com ele? Não quis ficar perto da família… Ele não gosta da família dele? Você acha que ele não gosta? E eu sei que ele tá ouvindo isso. Tá fingindo que tá dormindo, mas tá ouvindo. Ele sabe o quanto me deixa triste sendo grosseiro comigo, ele sabe o quanto eu to triste com ele". Titio disse que era coisa da idade. E que eu ia melhorar com o tempo. Disse também que eu estava dormindo, era impossível estar acordado e tão imóvel assim.
Tio, passei a minha vida inteira escutando o que as pessoas diziam que eu era. Imóvel. Quieto. Não era difícil ser a decepção da minha mãe. E saber disso.
Nunca fui de pedir desculpas. Mas naquela noite, em especial, queria ter pedido desculpas. Estraguei o ano novo dela. Sempre estragava.
Mas eu só queria que também me entendessem: eu não estava comemorando nada. Eu não queria comemorar nada. Eu lamento não ter dito o quanto eu fiquei feliz por comer as coxinhas de frango que estavam na mesa. Eu lamento não ter pedido socorro ao invés de gritar com você, mãe. Mas eu estava assustado. Eu estava, definitivamente, assustado. Com raiva. Do mundo. Desse mundo babaca do qual eu faço parte. Desculpe, estava crescendo. E crescer, crescer assim, sendo eu, me dá sempre uma vontade incontrolável de gritar com todos aqueles que me amam e dizer: “cês tão ficando doidos? Me deixem em paz. Me deixem em paz, mas não me deixem sozinho”.
Anos depois, quando [ironia]comemorava[/ironia] o ano novo junto dos meus avós, sendo chato outra vez, me despedi dos meus amigos quando deu meia-noite e subi para o apartamento sem dizer uma palavra. Vovó apareceu extremamente doída. Passou janeiro inteiro sem falar comigo direito. Era mais que meia-noite, todo mundo me procurava, e eu estava ali. Sozinho. De pijama. No décimo quinto sono.
Naquela altura do campeonato, eu já tinha ouvido falar de um negócio chamado hipocrisia.
Escapei da oração. Escapei dos abraços hipócritas. Mas magoei minha família. Eu lamento, porque sei que família é um negócio sublime, mas eu sou egoísta, egocêntrico, narcisista e covarde. E eu, eu, sou meu sangue, minha carne, minha vida, minhas pernas, meu ser.
Eu gosto de me satisfazer. E por causa disso, exatamente por causa disso, não desejei um próspero ano novo pra ninguém. Porque a única coisa que eu queria era que aquela música estúpida parasse. E só.
Eu sei, vovó, que a senhora acha que eu não sou grato por tudo o que já fez por mim. Eu nunca disse que sou grato. Na verdade, eu sou. Mas não sei dizer. E sei que a se a senhora for embora também, eu vou sentir sua falta e vou me arrepender por todas as vezes em que te neguei um abraço, do mesmo modo em que até hoje sinto a sobrecarga de carinho que neguei à minha mãe furando a minha carne e formando um vazio gigantesco, maior até do que a própria saudade.
Agradeço e comemoro, todos os dias, pelas vezes em que você foi na escola falar com a minha professora e dizer que eu não ia apresentar porcaria de trabalho nenhum, porque eu tinha vergonha.
O alívio que eu sentia cada vez que não precisava falar em público. Falar com ninguém.
Agradeço e comemoro, sempre, pelas vezes em que você me deixou levar sanduíche no dia da fruta, e ia lá no colégio falar novamente com a professora e explicar que eu comia fruta nenhuma. A professora sempre explicava que alimentação saudável era importante e você dizia: “Se meu neto não quer comer maça, ele não vai comer a droga da maçã”.
Eu sempre gostei quando você escrevia bilhetes dizendo que eu não ia participar do banho de piscina porque não gostava de interagir com os outros alunos.
Você me protegeu. O máximo que pôde.
Eu estou vivo, vovó. Mas não estou seguro.
Meus segundos favoritos não existem mais. Ou melhor, não penso mais neles. Não agora.
Todo o meu corpo está doendo. Sinto uma solidão enorme.
É o primeiro ano novo que passo completamente sozinho. A música estúpida está cada vez mais distante. Não tem televisão alguma por aqui. Só os fogos, mas acho que meus ouvidos enrugaram junto com meus dedos.
As mensagens que eu gostaria de receber, não recebi.
Não tem balanço, não tem escorregador, não tem gente de branco, não tem calcinha amarela, não tem o meu tio levemente alcoolizado, não tem amigo, não tem amor, não tem saudade.
Minha avó me chamou pra ver os fogos. Subi, gritei com ela, desci. Ela já não sabe mais o que fazer comigo.
E, pela primeira vez, sinto a dor da minha dor. Não tem mais canto pra que eu fuja. Não tem mais colo que sirva. Não tem mais ninguém. Não tem mais ninguém que queira me dar um abraço pra que eu possa dizer: “ano novo é um saco, eu não vou abraçar ninguém”, e voltar pro meu quarto, morto de satisfeito por essa droga de ano já ter acabado. Não tem mais. Não tem mais nada. Sinto a dor da minha tristeza. Meus órgãos estão se afogando.
Sinto o peso de ter escolhido ser eu. E sinto muito, eu juro que sinto muito.
Feliz 2014.
(Cinzentos)
Nenhum comentário:
Postar um comentário