Eu ando sem paciência pro mundo. Rastejo, talvez. Não me importa mais se a caneta cai embaixo da cama porque ela continuará ali. Mantenho meus joelhos esticados em cima da cama. Não me importa mais o furo na carteira, o espelho fora do lugar, a mochila jogada em algum universo paralelo. As moedas atrás do sofá já formaram um real, e as cédulas foram pra máquina de lavar. A pasta juntou poeira. A lixeira anda cheia de papéis, quase como um porta-joias que pra mim, só pra mim, perderam o valor, enchendo as baratas com a poesia que perdi a vontade de apagar. Não me importa se faz frio, calor, se a janela fica aberta em dia de chuva, se como frango ou como peixe. O relógio ainda está atrasado. Ou adiantado, porque não lembro qual foi a última hora que me interessou. A folha do calendário ainda não foi rasgada, por mim ainda estaríamos em janeiro de um ano promissor. O marcador laranja daquele livro ainda está fincado no prefácio. Eu não entendo as piadas, não troquei as pilhas do controle remoto, não quis saber o que tinha na geladeira, não cumprimentei o rapaz que trabalha no caixa da padaria. Ele também esqueceu de sorrir pra mim. E eu esqueci de reclamar. O troco ficou com ele. De novo. O dinheiro que me pediram emprestado eu nunca liguei de cobrar. A música que parei na metade ainda não teve tempo de terminar. As maçãs do rosto apodreceram, eu sorrio sem pensar. Sorriso quebrado… E eu sem tempo pra consertar. Eu confundo mocinho com vilão, eu nunca mais assisti televisão. Eu não sei do que as pessoas falam e também já não sei o que falar. Eu não sei das pessoas, porque as pessoas não sabem de mim. Ou nunca souberam e eu não quis me importar. O celular tem três novas mensagens, mas foi um plano que eu esqueci de cancelar. Cansei de pegar o mesmo caminho de volta pra casa. Meu retorno não tem becos, mas não tem saída. Nunca teve um ladrão pra me assaltar. Talvez assim eu tivesse morrido, sem que eu implorasse pra alguém me matar. Mas eu não quero morrer. Eu nunca quis saber desse negócio de morrer, aliás. Eu não tenho paciência pra velório, eu nunca sei o que usar.
Cinzentos, “O céu não é quadrado como na televisão”
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